quinta-feira, 25 de março de 2010

III


Mark sabia que a maioria das pessoas acharia o motivo de sua pressa algo completamente ridículo, mas não dava importância a isso. Também achava que os motivos pelos quais a maioria das pessoas se apressavam não passavam de uma grande bobagem. Então, elas que ficassem com os seus motivos que ele ficaria com o seu.

Pegou a chave de casa na mochila, entrou e foi direto para o seu quarto. Por sorte, não encontrou ninguém de sua família para lhe atrasar no percurso. Ligou a TV e sentiu um alívio quase indescritível quando percebeu que o programa ainda não havia começado.

- Mark, é você? _ perguntou sua mãe de algum outro cômodo.

- Sou eu.

- O almoço está no forno... Esquenta no microondas.

- Já comi.

A vinheta do programa aparece na tela e ele sente seu coração disparar. No fundo, não conseguia deixar de achar aquilo ridículo também; de qualquer forma, ridículo ou não, era algo que não conseguia controlar. Tratava-se de um programa de variedades. Quase sempre havia dicas sobre filmes, músicas ou lugares legais para se visitar no primeiro bloco e um entrevistado no segundo. Apenas dois blocos, fato que deixava Mark inconformado. Não que achasse o programa muito interessante; não que achasse que as dicas ou as entrevistas fossem geniais... A única coisa que realmente o interessava, e o interessava de uma maneira nada vulgar, era a apresentadora. Seu nome era Lisa. Não era a clássica bonitona, a la coelhinha da playboy. Era magra, não do tipo esquelética, tinha os cabelos vermelhos cortados à altura do queixo e vestia-se de maneira simples, quase sempre calça jeans e camiseta.

- Mark, algumas pessoas estiveram te procurando... _ disse sua mãe abrindo a porta.

- Agora não, mãe, estou vendo um negócio importante.

- Estavam bem vestidos – prosseguiu ela, ignorando-lhe a advertência -, de terno e gravata.

Mark ligou seu velho vídeo cassete, apertou o REC e foi atrás de sua mãe, que havia se encaminhado à cozinha e lavava algumas louças.

- Já volto, Lisa.

Outra vez sujeitos engravatados... Não fazia idéia do que poderiam querer com ele.

- E então, mãe, o que os caras disseram?

- Disseram que queriam conversar com você. Fiquei preocupada, achei que você tinha aprontado alguma... Mas aí me falaram que era sobre um questionário ou algo assim que você respondeu pela internet. Algo sobre um estágio.

- Questionário... Ah, acho que sei o qual! Mas será?! Aquele negócio me parecia pura charlatanice.

- Eu também quase não acreditei na hora que falaram o salário. Falei que achava que não existia estágio que pagasse isso. Você sabe quanto é?

- Sim, acho que me lembro. Foi só por isso que passei uma meia hora respondendo aquela porcaria. As perguntas eram muito estúpidas.

- Olha só, Mark. Você sabe que as coisas não andam fáceis aqui em casa ultimamente. Essas pessoas que vieram atrás de você disseram que não é nada garantido, que você só foi pré-selecionado. Deixaram esse cartão e disseram que você deve ir nesse lugar amanhã às 15:00 horas para a entrevista. Mas, se realmente der certo, o salário é maior que o do seu pai.

- É, eu sei, mãe, mas não fica me pressionando. Um milhão de pessoas devem ter sido selecionadas pra essa tal entrevista.

- Mark, quantas vezes eu já te falei pra não pensar assim. Você tem que...

- Ser mais otimista, pensar positivo e essa coisa toda – atravessou Mark. – Está bem, mãe. Prometo que eu viro o cara de mais vibrações positivas do mundo; mas, por favor, não vai comentar nada com o pai sobre esse tal estágio antes de ter alguma coisa mais concreta.

Sua mãe sorriu e disse:

- Você não tem jeito mesmo, menino. Tudo bem, pode deixar que não falo nada pro seu pai por enquanto. Agora pega esse pano aqui e vai secando a louça – disse ela atirando o pano de prato em sua direção.

Mark sempre detestou secar a louça. Por que fazer algo que acontece naturalmente? Era isso que sempre pensava. Mas, dessa vez, nem argumentou com sua mãe. A mensagem daquele bilhete não saía de sua cabeça: “Não confie neles”.

quinta-feira, 18 de março de 2010

II


Todos sabem que um tipo de paranóia paira nos grandes centros urbanos. As pessoas estão sempre desconfiadas, sempre alertas, segurando firme suas pastas e bolsas. Ao mesmo tempo, tentam fingir que não estão nem aí para o que está se passando a sua volta.

Mark, apesar de surpreso, não conseguiu deixar de achar engraçado o fato de que a senhora que lhe entregou um bilhete dizendo Não confie neles, de certa forma, havia o alertado para não confiar na mensagem. “Que porcaria de mensagem – pensou Mark. – Não confiar em quem, nas empresas de fast food? – ironizou consigo mesmo”.

O sujeito que havia mandado a mensagem lhe fez um sinal afirmativo com a cabeça, deixou a mesa em que estava sentado e foi embora. Mark não conseguia simplesmente ignorar ou encarar com naturalidade o fato de um estranho estar o seguindo e lhe mandando mensagens que não faziam sentido. De qualquer forma, o painel eletrônico da lanchonete estava mostrando o número de sua senha repetidas vezes, e a melhor alternativa no momento parecia ser pegar seu lanche e comer. E foi exatamente o que fez. Sentiu um pouco de sede e foi até o bebedouro tomar alguns goles de água. Voltou até a sua cadeira apenas para ficar sentado, sem fazer nada, enquanto a digestão se encaminhava. Gostava de momentos como aquele, barriga cheia, ouvindo música, sem nenhum trabalho do colégio para lhe incomodar ou mesmo sem ter que pagar alguma conta qualquer para seus pais...

Então seu celular vibra em seu bolso e ele recorda de uma triste verdade, os momentos de sossego absoluto não costumam durar muito tempo. Deixa-o vibrar por mais alguns instantes até finalmente tomar coragem de retornar à chata realidade de interações e compromissos. Quando apanha o telefone, sua surpresa é ainda maior. Não era uma chamada... era um lembrete. Como pôde se esquecer disso! Bem, era justamente para essa possibilidade que havia programado o lembrete... mas, até então, nem por um dia havia se esquecido. Seu único compromisso que considerava inadiável, e que cumpria com prazer. Não havia tempo para lamentar, faltava apenas meia hora e não tinha dinheiro para o metrô. Ou seja, precisava correr.

I


- Mark... Mark McCarthy!

Alguns risinhos contidos ao fundo e a voz se destaca novamente, desta vez, mais alto:

- Mark McCarthy!

Mark estava galopando por uma planície de relva parelha, quando aquela voz rouca invadiu seu sonho. Seu forte cavalo negro, estilo inglês, empinou. Que voz era aquela?! Talvez um terrível inimigo de poderes sobrenaturais ou talvez algum tipo de oráculo... Alguns instantes gastos na transição entre sonho e realidade e Mark vê sua professora de química, a velha senhora Gardiner, com o semblante mais impessoal que se possa imaginar. Seus colegas ainda estão com aquele risinho nos lábios, no melhor estilo “mandou bem, babaca!”.

- Da próxima vez, não esqueça o despertador, Sr. McCarthy.

Mark se perguntava como seus colegas de classe podiam rir de tiradas como essa, mas, enfim, o fato é que podiam.

- Boa! Vou anotar essa.

- O que foi que disse, Sr. McCarthy?

- Nada, senhora Gardiner. Desculpe o transtorno.

Senhora Gardiner olhou para ele como se fosse dizer alguma coisa, mas, desistiu, dando a entender que não valia a pena. Seguiu fazendo a chamada com sua voz rouca e monótona.

- Valeu por me acordar, Derick. É bom saber que sempre posso contar com você.

- Qual é, Mark? Eu não tenho a obrigação de tomar conta de você... E a galera vive dizendo que sou seu puxa saco, por viver salvando tua pele.

- Salvando a minha pele? – disse Mark com uma voz sonolenta enquanto rabiscava algo em seu caderno.

- Sem ressentimentos, cara – disse Derick soltando um risinho irônico. – O que você está fazendo aí?

- Calculando minhas faltas em química... pra saber quantas ainda posso ter.

- Pra quê?

- Pra fazer uma droga de um pudim, Derick. Pra saber se eu posso cair fora. Dia de sorte, ainda posso ter seis faltas.

- Mas pra onde você vai, cara?

- Sei lá.... Qualquer lugar. Apesar de ser difícil de acreditar, existem alternativas melhores do que três aulas de química com a senhora Gardiner.

Mark guardou seu caderno, pôs a mochila nas costas e colocou um dos fones de seu mp3 player no ouvido.

- Droga! Também não estou nenhum pouco a fim de ficar nessa aula. Mas fiquei com vermelha em química bimestre passado, e se eu levar “bomba” meu pai me mata.

- Boa sorte, Derick.

- Ei, Mark, e quando a gente vai ensaiar, hein?

- Quando você tiver dedicação o suficiente pra aprender pelo menos três acordes; quando a gente tiver um baterista e quando você perceber que não vai aprender a tocar guitarra jogando Guitar Hero.

- Já sei, está revoltado porque perdeu feio ontem, né? Não esquenta, cara, com o tempo você pega as manhas.

- É, Derick – ironizou Mark. – É exatamente isso, você é tão esperto, não tem mesmo como te enganar. Agora, vou indo nessa... Até depois!

- Até, Mark! Vai treinando...

Mark passava em frente à mesa da senhora Gardiner quando ela o interrompeu:

- Aonde o senhor vai, senhor McCarthy? Eu gostaria de lembrá-lo que...

- A senhora marca as presenças a lápis – atravessou Mark –, caso algum “espertinho” queira sair antes do término das aulas. A senhora não começou a dar aulas ontem e etc... etc... etc. Eu não sou nenhum “espertinho”, senhora Gardiner, e não tenho nada pessoal contra a senhora. Sei que a senhora não vai entender, mas eu só estou... só estou... dando o fora.

- Não pense que isso vai ficar assim, senhor McCarthy! O senhor costumava ser um ótimo aluno, mas este seu atrevimento! Isso vai chegar aos ouvidos do...

Mark colocou o fone no outro ouvido e saiu da sala. O mundo ficava muito melhor com uma trilha sonora. Enquanto atravessava o corredor, teve a impressão de que um sujeito que não conhecia tinha olhado para ele como se tencionasse lhe dizer algo. Um tipo magro, alto, meia-idade, cabelo grisalho só na parte logo acima das orelhas, metido a importante. Caminhou na direção de Mark olhando-o fixamente, mas, por sorte, passou reto. Talvez fosse o pai de algum aluno, um professor novo, um sujeito que ia dar alguma palestra, um advogado aleatório, enfim, havia inúmeras possibilidades. O fato é que Mark não pararia a música para falar com ele. Estava cansado de sempre ter que parar a música para alguém lhe perguntar algo do tipo: “Você sabe onde é o laboratório?”; “Você sabe como faço pra ingressar no coral?”; “Você sabe me informar como faço pra falar com o professor Stewart?”.

Sempre foi péssimo para explicar direções; nunca participava de atividades extra-classe; e, quando muito, só decorava os nomes dos professores no final do ano. Ou seja, definitivamente, não pararia a música. Precisava arranjar um jeito de matar o tempo, e a melhor alternativa que encontrou foi comer alguma coisa. No entanto, havia um porém, o dinheiro. Na verdade, esse quase sempre era o porém. Conferiu a carteira, depois de contar as notas, abriu o compartimento das moedas e contou-as também. Deveria dar para pagar a passagem de metrô até o shopping e um hambúrguer simples, talvez desse também para um refrigerante pequeno. Geralmente comia esse hambúrguer e bebia um refrigerante pequeno, mas nunca decorava o preço. Se não desse para pagar o refrigerante, provavelmente sobraria para pagar a passagem de metrô até perto da sua casa; se também não desse, voltaria a pé. A bateria de seu mp3 estava carregada e, se estivesse ouvindo música, poderia caminhar uns 20 km sem nem perceber.

Quando estava em casa sem fazer nada ou no meio de uma aula, o shopping parecia legal, mas, quando estava nele, achava-o uma droga. Não sabia dizer direito por qual motivo as pessoas do shopping o irritavam. Talvez porque tivesse medo de concluir que era parecido com elas. Mas, tudo bem, se estava ouvindo música nem prestava muita atenção nas pessoas.

Foi até a lanchonete de fast food em que sempre comia, a que tinha o lanche mais barato, e pediu o que sempre pedia. Após um rápido cálculo mental, percebeu que seu dinheiro não daria para o refrigerante e nem para o metrô. Não deu importância a isso; não fazia questão de beber algo enquanto comia e, como não tinha nada para fazer em casa, quanto mais demorasse a voltar, melhor. Enquanto esperava seu lanche, acompanhava o ritmo da música que tocava em seu mp3 batendo com os dedos na mesa. De repente, notou algo que achou curioso. O mesmo sujeito que havia cruzado com ele no colégio estava sentado a umas 5 ou 6 mesas de distância a sua direita. Segurava uma xícara numa das mãos e um cardápio na outra, desviou o olhar rapidamente quando foi notado, mas Mark teve certeza de que ele o observava.

Mas o que o sujeito poderia querer com ele? Talvez o tivesse confundido com alguém, ou fosse algum assassino em série ou algum pervertido ou sabe-se lá o quê. Encontra-se de tudo nas grandes cidades hoje em dia. Mark ainda pensava no que fazer quando uma senhora carregando algumas bandejas vazias e vestindo o uniforme de uma das lanchonetes lhe entregou um bilhete.

- O senhor de terno ali da outra mesa pediu pra lhe entregar... Não sei o que tem escrito aí, mas tenha cuidado, menino. Cuidado nunca é demais...

- Obrigado _ respondeu Mark sem saber o que pensar.

O papel estava dobrado duas vezes e continha uma mensagem curta e vaga: Não confie neles!